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Entrevista: Lyan K. Levian


1 – Quanto tempo, em média, você acha que é necessário para um escritor criar uma obra em que o começo, meio e fim consigam se interligar sem deixar nenhuma brecha no final?

R: Isso varia muito de uma pessoa para outra. Cada um tem um processo distinto, uma disponibilidade de tempo diferente para escrever. O que posso dizer com certeza é que é possível fazer um livro de 360 páginas em um semestre (contando desde a fase de pesquisa inicial, redação, revisão, até a publicação) se houver um foco completo nisso. Não é fácil, mas é possível.

Porém o mais comum é que um livro dessas proporções demore cerca de um ano ou mais para “sair do forno”, visto que um enredo longo é trabalhoso para ser desenvolvido. No caso de livros menores, este tempo pode cair para algo em torno de dois meses, se houver foco.

2- Quando começou a ideia de criar a obra “Anjo negro”? Foi alguma experiência pessoal ou apenas a observação do conceito romance LGBT em nossa sociedade?!

R: Este livro surgiu de uma forma absolutamente despretensiosa. Em meados de 2015 (não lembro ao certo o mês) veio a vontade de criar uma história com a premissa de “O que aconteceria se um estudante novato, no estilo ‘bad boy’, esbarrasse com um garoto introvertido e bolinado logo no primeiro dia de aula?”.

Com isso em mente, comecei a escrever.

Nesta época, a ideia de lançar um LGBT sequer passava em minha cabeça. Eu apenas quis escrever uma história que me interessasse, e nem pensava em mostrar para ninguém. Em outras palavras, eu escrevi algo que gostaria de ter lido - era apenas para mim. Como gosto de mangás no estilo “boys love/yaoi”, posso dizer que isso foi uma forte influência.

Depois de escrito, Anjo Negro hibernou na gaveta durante quase um ano. Quando meu namorado leu, disse que estava legal e incentivou a publicação. Foi então que fiz as correções de enredo necessárias e revisões visando a leitura de um público. O lançamento se deu inicialmente através da Amazon, em Agosto de 2016.

A história não foi fruto de uma experiência pessoal, mas de observação do que constantemente acontece ao nosso redor (embora tenha algo de mim costurado ao longo da trama).

3- Como você vê o modo em que crianças e, principalmente adolescentes LGBTs, lidam com o Bullying durante a vida e como isso foi essencial para a criação de Lucio, um dos personagens principais?!

R: Infelizmente não precisamos de muito esforço para ver que vários jovens não têm o apoio dos pais ou da sociedade quando se trata de sua sexualidade. E não estou acusando os pais, pois muitas vezes eles acabam nem sabendo que há algo de errado acontecendo com seu filho(a) na escola. Com isso, a criança/adolescente acaba sentindose só no mundo e se fecha, muitas vezes podendo partir para atitudes mais drásticas, cometendo abusos e crimes contra si.

A necessidade do diálogo é crucial, mas lamentavelmente é comum que membros LGBT encontrem essa agressividade dentro do próprio lar. A falta de informação que muitos ainda têm sobre este aspecto do ser (o fato de não estar nas normas cis hétero) causa atritos nocivos ao desenvolvimento de um ser humano. E, por causa desta visão distorcida que a sociedade impõe (com a prática do bullying, inclusive) acaba fazendo com que o jovem cresça achando que tem algo de errado em sua pessoa. Muitos têm medo de serem quem são e vivem uma vida de mentiras por medo de se expor.

Minha indignação com esta triste realidade me levou a criar Lucio, que vive por trás das cortinas, nos bastidores da própria vida.

4- Você acredita que os romances entre os LGBTs ainda são pouco explorados em livros, séries e filmes?! E como você acha que obras como “Anjo negro” colaboram para que a expansão dessa cultura seja espalhada para mais pessoas?!

R: Estamos vivendo uma época de transição, e isso é claro para nós quando olhamos para duas ou três gerações atrás. Naquela época os romances deste tipo eram não somente raros, mas camuflados. Os poucos exemplares que explicitavam isso (como “Bom Crioulo”, de Adolfo Caminha, 1895) eram recebidos com escândalo pela crítica, e continha sempre um enredo trágico. Isso reforçava para as pessoas que um romance entre iguais era errado, que sempre acabava mal, ou coisa do tipo. Esse estigma (de que um relacionamento LGBT acaba em desgraça) perdura até hoje no inconsciente coletivo.

Atualmente, graças a ações públicas apoiadas pelo governo como, por exemplo, a Parada do Orgulho LGBT, o tema está vindo à tona com maior frequência com a intenção de conscientizar e incentivar o respeito ao próximo. Acredito que muitos escritores se isentavam disso – o ato de inserir personagens LGBTs em suas obras - pelo receio da reação das pessoas. Mas podemos notar que isso está mudando vagarosamente. Afinal, temos uma sociedade miscigenada, e é interessante retratar isso na literatura e na dramaturgia, seja o escritor(a) um membro LGBT ou não.

Obras como “Anjo Negro”, em que retrata um romance gay com esse olhar mais moderno, mostra às pessoas que todos somos, acima de tudo, seres humanos com sentimentos, sonhos, temores e amores. Algumas pessoas já chegaram a mim dizendo que, apesar de nunca terem tido contato com a literatura LGBT, gostaram de Anjo Negro pela forma como apresentei o relacionamento de uma forma natural – apesar de abordar a questão do preconceito. E até ter lançado este livro e ter conversado com os leitores eu não tinha notado este fato, já que para mim era algo mais natural.

Vemos também que está cada vez mais comum novelas e séries com personagens representativos, e acredito que isso ajuda a criar uma compreensão maior entre as pessoas. O que muitos não entendem é que não estamos pedindo que o mundo torne-se LGBT. Tudo o que se pede é respeito à individualidade do próximo… Como pessoas, como cidadãos que todos somos.

Afinal, o preconceito nasce da falta de informação. Nasce das ideias errôneas preconcebidas em séculos passados e que se arrastam num lamaçal de ignorância até os dias de hoje.

5- Percebemos que Victor, um dos antagonistas da obra, se encaixa muito naquela premissa de que pessoas homofóbicas apenas sentem medo de demonstrarem seus sentimentos homoafetivos e que isso é apenas uma forma de aprisionarem a si mesmos naquele mundo hetenormativo perfeito e tentar fazer o mesmo com outras pessoas. Você acredita realmente nisso ou apenas quis mostrar o ódio que as outras pessoas sentem em relação ao que é diferente?!

R: Não podemos generalizar, dizendo que todo homofóbico é um ser escondendo-se de si mesmo dentro de um armário. Então, não acredito que esta “regra” seja verdadeira, não. Mas é fato que existem incontáveis casos assim.

O que muitas vezes acontece também é um certo machismo. Aquela ideia (completamente equivocada) de que um gay gostaria de ser mulher (posição passiva), e por querer ser mulher, desonrar a masculinidade de todos os homens (como se mulheres fossem inferiores). A questão de orientação sexual e identidade de gênero ainda causa nó na cabeça de quem tem medo de pesquisar mais a fundo. A desinformação é realmente um monstro enorme, e está profundamente enraizada.

No caso específico de Victor, ele teve uma experiência que o deixou realmente confuso no passado (é citada no livro, mas não darei detalhes pois são spoilers). Kenan percebeu rapidamente, e trouxe isso à tona, o que piorou ainda mais a situação psicológica de Victor. Agora… se ele é ou não, isso ainda será explorado futuramente. ;-)

6- Durante a trama notamos alguns clichês americanos, em que dentro de um casal gay um dos dois sempre é o mais frágil enquanto o outro é um pouco mais heteronormativo. Isso é importante para a representatividade ou ainda é necessário que outros tipos de casais, como negros e gordos, tenham também foco para que estereótipos assim sejam cada vez menor?!

R: Eu diria, inclusive, que este é um clichê encontrado também nos mangás Boys Love/Yaoi. A ideia do Seme (ativo) e do Uke (passivo) persiste, é verdade, em muitos livros LGBT.

Em Anjo Negro a forma como Kenan trata Lucio – e a maneira como este responde – tem a ver com suas personalidades e comportamentos dominantes. Não foi minha intenção mostrar que o padrão entre um casal homoafetivo é existir duas polaridades, ou 8 ou 80. Acontece que, de acordo com a minha proposta inicial de história (que cito na 2ª questão), as coisas simplesmente aconteceram desta maneira. Kenan, com seu jeito nada discreto e somado à auto-confiança tinha as rédeas nas mãos.

Sobre importância de representatividade, acho que a variedade é, com certeza, essencial. Existem pessoas de um jeito e de outro, e todos merecem seu lugar ao sol na literatura e dramaturgia.

7- Além de um simples romance, “Anjo negro” trata muito sobre o preconceito e a auto aceitação de seus personagens. O quão importante isso é para o amadurecimento de cada um?!

R: Amadurecer é, entre outras coisas, criar raízes em questões que pairam em nossa cabeça durante a adolescência e ao longo da vida. Enquanto adolescentes, muitas ideias confusas viram nuvens que sobrevoam nossas cabeças, muitas delas se chocando e criando tempestades terríveis, e outras somando-se entre si para ficarem ainda maiores. A chegada da vida adulta exige de nós que transformemos estas nuvens em algo mais sólido, e é aí que começamos a enraizar nossas crenças. As boas e as ruins.

Crescer num ambiente tóxico, em que se aprende que “o que eu sou é errado”, cria um adulto neurótico e cheio de armas contra si mesmo. Este adulto não encontrará paz, pois estará buscando-a enquanto seu verdadeiro eu estará sufocado, preso a sete chaves e morrendo dentro de um armário escuro e mofado.

Antes de a sociedade nos aceitar, temos que nos aceitar como somos e amar esse “eu”, acima de tudo. Kenan (um dos protagonistas) é absolutamente confortável com seu “eu interior”. O contraste que faz com Lucio mostra como a auto-aceitação é importante para crescermos sem neuroses venenosas para nosso ser.

8- Sobre as cenas um pouco mais picantes, tudo isso veio da sua imaginação ou você já teve experiências parecidas antes?! E qual a sensação que se sente ao descrever uma cena como essa ou como as diversas brigas físicas que ocorrem durante a trama?!

R: Depois de ter presenciado trinta primaveras, já tive sim experiências íntimas, mas não iguais às que escrevi em Anjo Negro. Afinal, cada caso é um caso (risos).

A sensação que sinto ao escrever uma cena picante é: mãos geladas, mente trabalhando. Falando mais abertamente, não sinto tesão enquanto escrevo uma cena “hot”, mas sim apreensão. A neura com a forma do texto faz com que eu faça isso de uma maneira quase fria. Depois, ao reler para as revisões é que sinto se está legal ou se precisa de uma pimenta a mais (ou a menos).

Quanto às cenas de briga, em alguns momentos eu sentia indignação e revolta e tinha que sair do computador para fazer alguma coisa diferente (eu tenho pena dos personagens, e isso dificulta às vezes). Assisti e li várias coisas contendo cenas de briga para que pudesse fazer algo mais fidedigno. Sempre fui uma pessoa que se manteve longe de confusões deste tipo, então não cheguei a vivenciar nada assim para descrever como sendo minha experiência. Uma pessoa próxima a mim já se envolveu em brigas de rua durante o ensino médio, então era a quem eu recorria quando queria um detalhe mais específico que não pudesse ser respondido pelo tio Google.

9- Qual a lição que você quer que as pessoas aprendam de sua obra e por que acha que é importante a representatividade nela inserida?!

R: Acima de tudo, imagino que ao finalizar Anjo Negro o leitor possa refletir sobre a questão de “ser quem realmente é”. E que vejam como o bullying (de qualquer tipo) pode levar uma pessoa a um buraco interior que ninguém mais enxerga.

As pessoas que praticam o bullying geralmente pensam que é apenas uma brincadeira boba e inofensiva, mas cada uma dessas “brincadeiras” adentram a vítima como lanças ácidas que corroem por dentro. E muitos pensam “mas a gente é amigo, é só zoeira”… É exatamente por ser um amigo que talvez esta vítima tenha medo ou vergonha de dizer “ei, isso machuca”. Medo de que, ao ser sincero, deixe de fazer parte do círculo de amizades (e francamente, se alguém tem amizades assim, está na hora de fazer uma reciclagem).

“Não fazer ao outro o que não gostaríamos que nos fosse feito”... Uma frase que verbalizamos, mas esquecemos de internalizar e praticar.

Outra coisa sobre a qual pretendo que as pessoas reflitam ao ler Anjo Negro é sobre a vingança. Aquela pergunta: será que vale mesmo a pena? A vingança é como uma pedra jogada para o alto: uma hora ela vai fazer a curva lá em cima e voltará mais veloz e perigosa para quem a jogou. É um gatilho acionado, e pode não ter volta.

10- E por último, qual a mensagem você gostaria de passar para jovens como Lucio que também sofrem preconceito na escola, ou em qualquer outro lugar, e como isso pode acabar influenciando quem são futuramente?!

R: Saiba que ninguém vive sua vida, e ninguém sente sua dor da forma que você a sente. Então não deixe que os outros decidam por você o que é certo ou errado. Não espere a aceitação da sociedade para só então se aceitar.

É verdade que ao sermos nós mesmos (seja com relação à sexualidade, jeito de ser, ou opiniões em geral) vamos encontrar obstáculos muitas vezes dolorosos, pois estaremos enfrentando uma grande corrente contrária. Acontece que o tempo nos fortalece, e aos poucos vamos aprendendo como navegar essa correnteza. O que realmente nos mata por dentro é rejeitar nossa natureza.

Somos todos diferentes uns dos outros, seja G, L, B ou T... Ou qualquer rótulo que seja. Por mais que a sociedade insista em criar padrões e etiquetar a todos de acordo com isso, a grande verdade é que como seres humanos somos todos únicos, cada um mostrando ao universo uma nuance de um arco-íris de diversidade. E ao mesmo tempo, é importante saber que por outro lado somos todos iguais também: todos somos pessoas com o direito de viver em sociedade e receber todo o respeito e admiração merecidos.

Para finalizar, reitero aqui minha frase que uso na bio, pois é no que eu realmente acredito, do fundo do coração: "Somos todos anjos em corpos humanos, e anjos não têm definição de gênero. Logo, não importa a quem se ame, desde que seja verdadeiro"

 

Do autor: Um grande abraço a todos da equipe Jovens Escritores e a todos os leitores e escritorxs deste mundo que ainda nos reserva coisas tão lindas! Agradeço muito pelo convite dessa entrevista. Foram perguntas super significativas, e que eu amei responder! ^_^

O prazer foi nosso!!!


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